Na última quarta-feira, um evento de abertura do mês de visibilidade das pessoas trans e travestis, conhecido como Janeiro Lilás, ocorreu na Câmara de Vereadores de Santa Maria. Entre relatos de homens e mulheres trans, a inserção no mercado de trabalho é descrita como uma batalha enfrentada por muitos, mas ainda conquistada por poucos no município.
A assinatura na carteira de trabalho, por exemplo, mudou a vida da funcionária do Hospital Universitário de Santa Maria (Husm) Camilly Hoffman e da assessora parlamentar Cilene Rossi, que atualmente buscam conscientizar sobre a importância das oportunidades.
Para garantir que mais pessoas trans participem do cenário econômico, três Projetos de Lei (PLs) tramitam na Câmara de Deputados nos últimos anos. Um deles, o PL 144/2021, traz um dado alarmante fornecido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra): 90% das pessoas trans recorrem à prostituição ao menos em algum momento da vida, devido à exclusão do mercado.
No Rio Grande do Sul, mais de 2,6 milhões de gaúchos foram admitidos em setores como Agropecuária, Comércio, Construção, Indústria e Serviços de 2021 a novembro de 2022, conforme o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) da Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social (FGTAS), vinculada à Secretaria Estadual de Trabalho e Desenvolvimento Profissional. No mesmo período, foram contratadas 55,7 mil pessoas em Santa Maria.
Apesar do sistema não contar com dados que possibilitem saber quantas pessoas trans procuraram as Agências FGTAS/Sine e/ou fazem parte do quantitativo de admissões nestes anos, há iniciativas que buscam acompanhar de perto os processos no país e na cidade.
Esse é o caso da plataforma nacional TransEmpregos, que já conta com mais de 2,2 mil empresas parceiras, e do projeto Transformais, da empresa Efeito Mais, de Santa Maria, que auxilia candidatos trans na busca por oportunidades de emprego no município.
“Coloquei na minha cabeça que eu queria um serviço formal”
Fotos: Eduardo Ramos (Diário)
Aos 10 anos, a santa-mariense Camilly Hoffman já não se identificava com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer. Hoje, aos 34 anos, ela reflete sobre o caminho trilhado até se reconhecer como mulher trans.
– Quando eu vesti a primeira roupa foi com 17 para 18 anos. Achava bem estranho, porque eu tinha medo. Não sabia o que ia vir pela frente. Eu tinha medo de contar para os meus pais, porque eu morava com eles. Então, eu fazia anotações de tudo o que eu pensava e escondia no sótão de casa. Quando eu tinha quase 18 anos, meu pai foi mexer no sótão e descobriu o questionário. Ele me perguntou o que era e eu tive que abrir o jogo – relata.
Moradora do Bairro Urlândia, Camilly lembra dos ensinamentos e convivência com Verônica Oliveira, mulher trans morta em dezembro de 2019, e que deixou um legado enquanto ativista e criadora de uma casa de acolhimento para pessoas trans em Santa Maria.
A inserção no mercado de trabalho sempre foi considerada uma meta para Camilly, que durante 13 anos recorreu a prostituição para obter renda.
– Sempre coloquei na minha cabeça que eu queria um serviço formal. A minha família é evangélica e não é que eles não aceitavam, mas como eu já conhecia tudo, sabia que eu não queria aquilo ali para mim.
Nos últimos três anos, Camilly também se aventurou no ramo de decoração de festas, conquistando clientes e fazendo amigos. A oportunidade do emprego formal surgiu apenas em 2021, a partir da indicação do companheiro, com quem mantém um relacionamento há 10 anos.
Hoje, o trabalho como copeira do setor de Nutrição e Dietética do Hospital Universitário de Santa Maria (Husm) é sinônimo de conquista e orgulho. A rotina de trabalho no hospital envolve desde o acesso às restrições alimentares dos pacientes até a entrega dos alimentos em unidades, conforme a escala. Para Camilly, é a partir de oportunidades como esta que pessoas trans terão a chance de mostrar o potencial, saindo da “margem” da sociedade.
– É importante nós, mulheres trans, estarmos inseridas no mercado de trabalho. Aqui, eu me sinto humana e realizada. Convivo com muita gente e recebo carinho. Como esse é meu primeiro serviço formal, consegui muitas amizades e todos me adoram, porque gosto de conversar, brincar. Danço e canto bastante aqui. Nós não somos só aquilo que a maioria da sociedade coloca para a gente. Somos muito mais.
Em janeiro de 2021, ela resolveu dar início a uma nova etapa, ingressando no curso Técnico em Enfermagem no Sistema de Ensino Gaúcho (SEG). Conciliar os estudos com o trabalho tem sido uma missão com um propósito maior: ajudar outras pessoas trans.
– Eu tenho sonhos altos. Eu quero viver e me formar. Eu pretendo fazer pós-graduação em Enfermagem, porque tem muita demanda dos profissionais de saúde com essas questões. Eu quero me especializar para ajudar as mulheres trans, porque tem muita informação que ainda não se tem sobre isso – afirma Camilly, que deve se formar neste ano.
“Você receber seu crachá com nome e gênero que se identifica é grandioso”
Sentada em uma cadeira no centro do plenário da Câmara dos Vereadores de Santa Maria, a assessora parlamentar Cilene Rossi Soares de Moraes, 52 anos, faz uma análise da própria trajetória enquanto mulher trans em Santa Maria:
– Não se nasce mulher, torna-se mulher. Eu sempre fui feminina, mas saber com determinação o que eu queria, posso te dizer que foi entre 12 e 15 anos. Não posso te dizer que foi com uma data precisa, porque a gente fica no processo de transição. Hoje, quero maquiar. Amanhã, não quero. Hoje, a mãe saiu e eu vou vestir a roupa dela. Mas, com 15 anos, eu já sabia que queria me maquiar e usar roupas femininas.
A Casa do Povo, que é caracterizada por intensos debates políticos, é um espaço também de coragem, algo que Cilene descreve como essencial para enfrentar o preconceito sofrido pela população trans até os dias atuais:
– Tudo parte do princípio da coragem. Vontade a gente tem, mas às vezes, falta coragem. Hoje, me enxergo como uma ativista mesmo, mas foi uma trajetória muito longa e árdua, por causa do preconceito. Não pela família, porque essa foi uma base muito importante. Eu pensava “o que o pessoal vai falar para a minha família?”, até o momento em que eu disse que não queria me importar com mais nada. Eu quero ser feliz.
Para grande parte da população, a felicidade está ligada às oportunidades de colocar comida na mesa, pagar as contas e crescer profissionalmente.
Desde pequena, Cilene contribuía com a renda familiar. Neste processo, fez faxinas e até mesmo, cuidou de carros na Avenida Rio Branco. A inserção no mercado de trabalho formal veio após 15 anos de atuação na prostituição, tempo que ela não considera perdido.
No final de 2011, Cilene foi convidada pela ONG Igualdade para participar de um projeto destinado à confecção de enfeites para o Natal da prefeitura. A chance renderia uma indicação para um emprego com a tão sonhada carteira assinada.
– Quem se destacou mais neste trabalho, que era temporário, eles iam achar de encontrar um emprego formal. Minha supervisora, um certo dia, me ligou. Ela trabalhou 25 anos na Rodoviária e ela sabia de uma oportunidade de emprego. Ela fez o contato com a direção e falou que havia uma pessoa que estava apta e deu todos os meus requisitos.
Após um processo de análise de todas as condições e das medidas a serem tomadas judicialmente em caso de homofobia e transfobia, Cilene foi contratada em janeiro de 2012 para trabalhar na Rodoviária de Santa Maria. Nesta etapa de trabalho, que durou seis anos, ela destaca um momento de respeito máximo:
– Eu não tinha ainda documentação retificada e o meu patrão me chamou para uma reunião. Fazia 15 dias que eu estava empregada e ele perguntou como eu queria ser chamada. Eu disse que poderia ser por qualquer nome desde que fosse com respeito e ele disse que não. Perguntou como meus amigos e familiares me chamavam, e eu disse que era Cilene Rossi. Então, ele disse que, no crachá, estaria Cilene. Foi batido o martelo e os colegas tiveram que passar por um processo de readaptação daquele nome de batismo para Cilene. Mas, eles tiraram de letra, porque eles viam uma figura feminina.
Desde janeiro de 2021, Cilene é assessora parlamentar no gabinete da vereadora Marina Callegaro (PT), dando suporte principalmente para outras pessoas trans que desejam oficializar o nome social, garantindo os próprios direitos enquanto cidadãos brasileiros.
“A diversidade e a inclusão são benéficas financeiramente para uma empresa”, afirma especialista
A discriminação e o preconceito continuam sendo os principais fatores que dificultam o acesso de pessoas trans ao mercado de trabalho. Criado em 2013, o projeto TransEmpregos media o processo de contratação destes profissionais, gerando oportunidade de renda. A plataforma já conta com mais de 2,2 mil empresas parceiras e é considerada a maior e mais antiga iniciativa voltada à empregabilidade no país, servindo de inspiração para outros.
Em Santa Maria, a empresa Efeito Mais busca fazer a diferença na inserção de profissionais trans no mercado formal. O sócio diretor, Alexandre Martins, 50 anos, explica que a ideia de criar o projeto Transformais, em 2021, tem como ponto de partida a pesquisa sobre o ensino profissionalizante como forma de inclusão de pessoas transgêneras no mercado, realizada atualmente no âmbito do mestrado em Ensino de Humanidades e Linguagens na Universidade Franciscana (UFN).
– A partir deste projeto de mestrado, fiquei desconfortável com a situação de ser só mais um arquivo para Lattes. Eu acredito muito que as pessoas trans precisam ir para o mercado e é preciso fazer alguma coisa. Na mesma época, havia iniciado um trabalho voluntário no Transempregos, de São Paulo, e eu estava atendendo pessoas do Brasil inteiro, de maneira online. Auxiliando a fazer currículos e a olhar as vagas a partir da experiência profissional surgiu a ideia de fazer em Santa Maria algo do tipo – conta.
Para Martins, a análise da movimentação de outras cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre foi essencial para implementar o projeto no município. Há 15 anos na área de gestão de pessoas, ele sugere que as empresas apostem na diversidade.
– Nós temos empresas que visam o lucro e isso é fato. Alguns estudos apontam que 35% das empresas que optaram por um staff inclusivo se tornaram 33% mais lucrativas e tiveram funcionários 17% mais engajados, e conseguiram diminuir 50% os conflitos entre funcionários. A diversidade e a inclusão são benéficas financeiramente para uma empresa. Então, que elas consigam ver isso com um olhar social, inclusivo.
Também administrativo e de crescimento, porque a diversidade aumenta o potencial dentro das equipes – argumenta Martins.
Parcerias
Em setembro de 2022, a empresa fechou parcerias com o Ambulatório Transcender e a ONG Igualdade. Para participar do projeto Transformais, o candidato deve ir a um destes locais, demonstrando interesse na iniciativa. O telefone e o nome social do candidato será encaminhado para a empresa, que entrará em contato para agendar um horário. Martins enfatiza que mais de 50% dos candidatos trans do projeto tinham Ensino Superior:
– Nós começamos em setembro do ano passado. Até dezembro, atendemos sete pessoas. Dessas, quatro delas tinham Ensino Superior e três tinham Ensino Médio completo. Este ano, já estamos com uma lista com 10 candidatos e está na mesma média. Acredito que 60% têm curso superior e o mais triste disso é ver estas pessoas na rua, nas esquinas, porque elas não têm acesso ao mercado de trabalho por ser transgênero ou travestis.No segundo ano do projeto, o objetivo é expandir o campo de oportunidades para o grupo.
– Já conseguimos encaminhar algumas pessoas. Já conseguimos ter essa abertura. Mas a nossa meta para esse ano é abrir vagas afirmativas para pessoas trans dentro das empresas. Nós já temos algumas empresas parceiras, mas ainda falta muito. Considerando que hoje em dia, eu atendo mais ou menos 50 empresas, ter duas ou três que estão abertas a isso é quase nada. Então, a nossa meta é bater de porta em porta, como eu digo – conclui Martins.
Inclusão em todas as etapas
Para Cilene e Camilly, as pequenas ações fazem parte do processo de acolhimento nas áreas que atuam no momento. O crachá com o nome social, por exemplo, é sinônimo de respeito e dignidade dentro do espaço de trabalho. Martins enfatiza que a inserção de pessoas trans nas empresas precisa ser também um processo pautado em ações reais:
– Eu sempre digo que não adianta a empresa abrir uma vaga inclusiva para dizer que é inclusiva. Tem até um termo em inglês que usamos muito para denominar as empresas que sustentam a fachada de inclusiva, mas internamente não tem programa nenhum ou acompanhamento. Nesses casos, a pessoa se sente desprezada, rejeitada e inferiorizada dentro da empresa e não é essa a intenção. A intenção é de que ela esteja lá dentro, exercendo o seu papel profissional e sua cidadania, sustentando-se a partir daqui. Mas também que seja um ambiente saudável e que ela tenha chances, como todos os outros, de crescimento e promoções. E se for da vontade dela, ocupar um cargo de gestão.
O QUE BUSCAM OS PROJETOS DE LEI
Nos últimos anos, três Projetos de Lei foram submetidos e tramitam na Câmara de Deputados, buscando garantir oportunidades de emprego para pessoas trans. São eles:
PL 5.593/2020
Prevê a alteração da consolidação das Leis de Trabalho para reservar, pelo menos, 50% das vagas destinadas à contratação de aprendiz para a contratação de negros, mulheres e LGBTQI+
PL 144/2021 (encontra-se apensado a PL 5.593/2020)
Trata sobre a reserva de vagas de emprego, ou estágio para mulheres transexuais, travestis e homens transexuais nas empresas privadas e dá outras providências
A proposta garante o respeito à autodeclaração de identidade de gênero no ambiente de trabalho, ou seja, o respeito ao uso do nome social; ao modo de vestir, falar ou maneirismo; ao uso do banheiro do gênero com o qual a pessoa trans se identifica; e a realização de modificações corporais e de aparência física
O projeto de lei também determina que o nome civil da pessoa trans seja utilizado apenas para fins administrativos internos
PL 2.345/2021
Institui a Política Nacional de Emprego e Renda para a População Trans (TransCidadania), destinada à promoção da cidadania de travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade social